sábado, 27 de outubro de 2012

Sem Terrinhas, as crianças do MST .

Encontro Estadual Sem Terrinhas no Ceará. Veja as fotos.
http://www.flickr.com//photos/88707492@N05/sets/72157631783574754/show/

Ser indígena no Brasil - Texto do Blog Almoço das Horas.

A recente divulgação da carta que uma comunidade indígena Guarani-Kaiowá de Dourados (MS) enviou à Justiça Federal pedindo que, uma vez que não lhes é permitido viver da forma que consideram digna, seja logo decretada a morte de toda a comunidade, por cruel que pareça, não deveria causar espanto. Condenados à morte, sejamos sinceros, os índios brasileiros estão há mais de 500 anos, mas a execução da sentença é lenta, torturante e cínica.
O que espanta, desta vez, é que os próprios Guarani-Kaiowá tenham pedido ao seu inimigo mais ou menos declarado – esta coisa que insistimos em tratar como “civilização” – que seja mais sincero. Sim, mais sincero e diga claramente que o índio não interessa, não se encaixa no modo de vida a que todos, sem privilégios (ouçam o eco iluminista...), estamos condenados.
Aprendemos com Marx que o capital libertou o trabalhador da escravidão à força, típica de formações econômicas pré-capitalistas, para submetê-lo a uma forma diversa de escravidão: o trabalho assalariado, a compra e venda da força de trabalho. (Sim, ainda há trabalho escravo – e ele não é incompatível com o capitalismo. Apenas não pode ser a regra, porque a valorização do capital depende de sua circulação também na forma de salário, o que não impede que um ou outro capitalista faça uso da extração violenta da força de trabalho.)
O trabalho como mercadoria é – em regra, insisto – o único compatível com uma sociedade em que tudo é mercadoria, em que o acesso aos bens indispensáveis à existência passa inescapavelmente pelo mercado: pagou, tem; não pagou, não tem. Ponto final. É óbvio, neste esquema rigoroso de trocas, que não se tolere qualquer exceção à lógica mercantil. Em outras palavras, o que o capitalismo não tolera é a manutenção, em seu mundo, do que não é mercadoria e, ainda por cima, impede o livre desenvolvimento de suas forças.
O que são, afinal, os índios para a ordem capitalista? Um ônus, um entrave, uma aberração, mas que, por não ser conveniente à “civilização” assim declará-los, recebem da nossa Constituição instrumentos para sua proteção que são constantemente “desmoralizados” (e é inevitável usar aqui esta palavra porque a proteção aos índios assume exatamente uma feição moral na ordem jurídica, ao mostrar como somos gratos e responsáveis com nossas, digamos, “origens”), como na decisão da Justiça Federal que exterminou, por enquanto, a paciência dos índios e sua esperança de viver no espaço que a “civilização” reservou àqueles que a antecederam. E sobreviveram à sua afirmação.
A carta à Justiça Federal não deixa dúvida: os Guarani-Kaiowá cansaram de reivindicar o direito de sobreviver como índios e não aceitam viver senão como índios. Não aceitam migrar para o regime do trabalho precário (prestado, no geral, a quem tomou suas terras) ou da mendicância às margens do exuberante mundo das mercadorias. O “bilhete suicida” que essa comunidade manda para nós, não o tomem como chantagem, “drama” etc. É um “basta”, um “chega”, mas principalmente uma prova de que os índios, com sua habitual sabedoria, entenderam melhor do capitalismo e de sua “civilização” do que nós, que nele estamos afundados até o pescoço – e um pouco mais.
Não só sua própria existência, mas a forma como os índios insistem em mantê-la é uma grande afronta ao capital e sua lógica. Vejam o que diz a carta: “Nós comunidades cultivamos o solo, produzimos a alimentação aqui mesmo, plantamos mandioca, milho, batata-doce, banana, mamão, feijão e criamos de animais domésticos, como galinhas e patos. Aqui agora não passamos fome mais. As nossas crianças e adolescentes são bem alimentadas e felizes, não estão pensando em prática de suicídio. Assim, há uma década, nesses 12 hectares estamos tentando sobreviver de formas saudáveis e felizes, resgatando o nosso modo de ser e viver Guarani-Kaiowá, toda a noite participando de nosso ritual religioso jeroky e guachire”. Como assim alimentadas, saudáveis e felizes? Sem ter pago por isso? Este intercâmbio do homem com seus iguais e com a natureza orientado apenas e tão-somente por suas necessidades – do espírito e do estômago – é inadmissível para o capital. Mais ainda: é sobre sua negação que se constituiu a forma como vivemos nos últimos 3 ou 4 séculos.
Os índios, neste contexto, são não apenas supérfluos, mas uma espécie de mau exemplo a ser apagado do horizonte de formas de “ser e viver” à venda – sim, à venda – em nosso tempo. O que será de uma sociedade “sem alternativas” se tolerar uma forma de vida que se nega à troca, ao dinheiro, à concentração da riqueza, ao desperdício? Desta vez, a pedido dos próprios índios, a “civilização” terá oportunidade de declarar o que pensa a este respeito.
A propósito, a Constituição brasileira afirma que “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (art. 231).
Se nossas autoridades, que têm sua função justificada por essa mesma Constituição, não se preocuparem em respeitar tais palavras, será muito difícil evitar que se confirmem a tragédia da carta dos índios e o pessimismo das linhas acima. Mas também será cada vez mais difícil – creio e espero – manter os grupos oprimidos e suas reivindicações dentro de comportados limites legais.
*Tarso de Melo (1976) é advogado, mestre e doutor em Direito pela FDUSP, professor da FACAMP e coordenador de pós-graduação da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. É um dos coordenadores da coleção Direitos e Lutas Sociais (Dobra/Outras Expressões).
Fonte: Editora Expressão Popular

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Reurbanização ou Apartheid Urbano?

Ensaio para a disciplina Fundamentos das Ciencias Sociais do curso de Ciencias Socias da UFPA/Marabá.
 



"A cidade não pára, a cidade só cresce,
o de cima sobe e o de baixo desce"

Chico Science


O desejo de ter uma casa própria está no imaginário de boa parte da população brasileira, a ideia de possuir e usufruir de um espaço seu pelo resto de sua vida já se estabeleceu como parte essencial dos planos de milhares de brasileiros ao longo de nossa historia recente. O governo brasileiro lançou ao longo das últimas décadas vários programas de habitação, como o Minha Casa, Minha Vida, mais recentemente e vários outros que em tese deveriam ajudar na superação de um problema social grave de falta de planejamento urbano, de políticas publicas de habitação e saneamento básico, mas que nunca deram conta de superar um déficit habitacional histórico. A casa própria como realização de um sonho, continua para muitos, apenas um sonho, pois na vida real, moradia no Brasil já se tornou há muito tempo, um verdadeiro pesadelo. Em especial nas áreas urbanas e grandes centros, este útimo como o lugar pra onde milhares de brasileiros se direcionaram nas últimas décadas na busca de trabalho e sobrevivência, ou simplesmente de um lugar para viver.
O Estado brasileiro não tem sido capaz de avançar nesse campo sem promover o terror urbano, a perseguição aos moradores de favelas, executada friamente pela polícia com o aval do próprio Estado. Além disso, temos como consequência dessas ações, a estigmatização dos moradores de favelas, que em geral, são vistos como criminosos, sob olhares racistas dos mais diversos setores da sociedade.
A luta por espaço nas grandes cidades revela uma lógica perversa instaurada pela força do capital no Brasil desde o início do século XX e que ganhou impulso ainda maior com o avanço dos grandes projetos empreitados pelo governo militar a partir dos anos 60 e se perpetua até hoje através de grandes corporações bancárias mundiais e empreiteiras da área da construção civil.
Neste contexto, nos propomos a discutir a partir de um olhar crítico, as sucessivas e sistemáticas remoções de moradores de favelas na cidade de São Paulo, bem como os incêndios que vem ocorrendo na cidade nos últimos meses, o que se percebe como mais uma etapa do processo de expansão do capital engendrado por uma lógica perversa, criminosa e de um total descaso com a vida e dignidade humanas; e que ainda encontra respaldo legal e conivência do poder público, no que mais parece ser uma "higienização" do espaço urbano com o objetivo de "abrir caminho" para a especulação imobiliária voltada para a chamada reurbanização seguindo as regras do capital que se pauta também em um discurso de urgência em torno das expectativas de eventos esportivos internacionais como a Copa do Mundo de 2014. Nas palavras de Garnier,

 A chegada, aos bairros operários, de grupos sociais pertencentes às classes de maior pode aquisitivo é vista, com frequência, como uma invasão. Para a maior parte dos moradores afetados, essa mudança significa especulação financeira e imobiliária, o que acelera sua expulsão e substituição por cidadãos mais abastados. (GARNIER,2012)

Dentro desta lógica, o espaço denominado de favela representa uma espécie de entrave ao canteiro global de obras numa assimetria atroz que só pode ser interpretada como uma forma gritante de um conflito de classes pela ocupação dos espaços urbanos (HARVEY, 1990). Harvey também aponta que muito mais do que um conflito, há sim, o reforço de uma divisão de classes, um separatismo urbano, pois com o crescimento dos chamados setores de serviços, fomentados principalmente pela "terceirização" de  uma série de atividades comerciais, como por exemplo, a construção de shopping centers e condomínios residenciais em áreas de crescente urbanização; áreas consideradas também em crescente valorização pelo mercado imobiliário. Dessa forma, as favelas recebem assim sua "ordem de despejo" o que vai gradativamente sendo assimilado como um processo natural ou como parte de um movimento maior que é compreendido como necessário por grande parte da população cinicamente manipulada pelos meios de comunicação de grande alcance como a TV e os jornais. Tudo em nome de um suposto desenvolvimento e que agora se torna ainda mais perverso com o seu mais recente adjetivo: sustentável.
O fenômeno não é novidade e nem exclusividade de São Paulo ou de outras capitais brasileiras. Cidades como Paris, Pequim, Nova York, Istambul e outras mundo afora têm historias muito semelhantes e seguem dentro de um modelo de expansão do capital globalizante gerador de um habitat mais clean para os vips da sociedade. Enquanto isso, somente no ano de 2012, já foram registrados mais de 33 incêndios em favelas na cidade de São Paulo e o número já pode ter aumentado. Além do mais, ocorre de forma sistemática também, a remoção de famílias para outras áreas longe do centro comercial e das áreas com crescente valorização imobiliária. Geralmente, as remoções acontecem sob a promessa de uma relocação dessas populações para novas moradias, mas na prática são pouquíssimos os contemplados com algum tipo de indenização ou simplesmente a espera pelo "novo lar" supera em muito o tempo anunciado antes da remoção. É como se fosse preciso "maquear" a cidade para os grandes negócios e a melhor maneira é eliminar qualquer obstáculo; logo, se as remoções em massa não são suficientes, surgem também os incêndios para colaborar com o processo pois são sempre declarados como fatalidade ou acidente inexplicável. Os incêndios nas favelas de São Paulo já são objeto de investigações, o que muito provavelmente não vai dar em nada, se considerarmos a possibilidade de alguém realmente ter algum dia que pagar pelo crime.
Fatos como esses ocorrem em todo o país quase que diariamente. O caso mais conhecido recentemente foi a ação desastrosa e criminosa ocorrida em Pinheirinho, no município de São José dos Campos à 97km da capital paulista, em que a polícia com um mandato de reintegração de posse invadiu e atacou violentamente os moradores daquele local, expulsando-os à força e destruindo por completo suas casas e seus pertences. De acordo com notícia publicada no site EBC da TV Brasil no dia 29/09/2012, há uma CPI instaurada na Câmara Municipal de São Paulo para investigar se os incêndios ocorridos nos últimos meses se confirmam ou não como criminosos. A Câmara, inclusive, já foi palco de protestos de moradores que ficaram na rua, perderam seus pertences, ou ainda mais grave, perderam filhos, amigos ou parentes em algum incêndio recente.
No caso das remoções em massa, estas são geralmente seguidas de tensões, confrontos, prisões e até mortes entre a polícia e moradores. A mídia televisiva tem tratado os incêndios como resultados do intenso calor que se abateu na cidade e/ou por causa das péssimas instalações elétricas que existem nas favelas, fazendo assim seu papel de colocar a situação como "fatos isolados" em uma tentativa de reforçar a ideia de que, mais cedo ou mais tarde, os incêndios acabariam acontecendo devido à falta de infraestrutura dos locais onde aquelas pessoas moram. Tudo isso "apazigua e camufla" uma triste realidade vivida por milhares de brasileiros mergulhados num verdadeiro "inferno urbano".
De acordo com pesquisadores do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos (LabHab) e do Laboratório do Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade), da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), oito grandes intervenções em curso estão previstas para a cidade de São Paulo. O problema é que as remoções, as quais são parte da chamada reurbanização, não são realizadas dentro de um planejamento real de infraestrutura, saneamento básico, indenizações pela saída do local onde o morador habitava, ou ainda, uma real discussão do por que aquelas famílias devem ser removidas para outro local. Não há a construção de um diálogo claro ou participação efetiva dos moradores no processo. A vida humana fica relegada a um segundo ou terceiro plano porque "o mercado ou o poder do capital não podem esperar". Ainda nesse contexto, a Defensoria Pública da União e o Ministério Publico limitam-se aos cálculos dos impactos causados pelas remoções e/ou pelos incêndios, apontando claramente que seu posicionamento segue o discurso da reurbanização inevitável e urgente. Como resultado dessa política, o número de desabrigados ou sem-teto na capital paulista só tem aumentado a cada dia.
Em uma época em que alguns teóricos chegam a anunciar o "fim da história", a luta de classes se demonstra mais evidente do que nunca, exposta de forma perversa através de despejos, perseguições e assassinatos, que obedecem a uma lógica famigerada entendida e anunciada em forma de "ordem e progresso", quando, na verdade, estamos testemunhando um apartheid de classes diante dos nossos olhos. Em seu livro, "A Condição da Pós-modernidade", David Harvey enxerga o capital como um processo não uma coisa; e é exatamente esse processo que vivenciamos nas mais diversas áreas urbanas no Brasil e em diferentes parte do mundo. Nas palavras de Harvey,

Esse processo mascara e fetichiza, cresce através de uma destruição criativa, cria novos desejos e necessidades, explora as capacidades de trabalho humano e de desejo, transforma espaços, e acelera o ritmo de vida. Ele produz problemas de acumulação material para a qual há apenas um número limitado de possíveis soluções. (HARVEY, 1990, p.343) (Tradução minha)[1].

Vemos que esse processo vai se "naturalizando" como inevitável e é justamente pelo fato de que existe um débito histórico do Estado com a própria população é que se criam mecanismos como o discurso da reurbanização; discurso este que legitima a remoção de famílias das favelas, que são vistas como um entrave para o desenvolvimento e para o crescimento econômico local e global. No entanto, somente aqueles poucos que tiverem condições financeiras de se endividar pela vida inteira poderão adentrar ao mundo do apartheid urbano e se mudar para as cidadelas monitoradas por câmeras 24 horas. O mundo dos condomínios fechados (e muito bem fechados) com a garantia das empresas de segurança privada, que cada vez mais ganham espaço nas áreas residenciais e comerciais.
            A fragmentação e a compartimentação do espaço geográfico são características do momento histórico em que vivemos. De acordo com Santos (2011, p. 81), "com a globalização, todo e qualquer pedaço da superfície da Terra se torna funcional às necessidades, usos e apetites de Estados e empresas nesta fase da história", ou seja, nada está livre e nem deve estar de se adaptar a esse sistema que tudo empacota e transforma em produto para ser ofertado ao "deus" que nos acostumamos a chamar de mercado. O movimento que segue é o de apropriação e desapropriação, ocupação e desocupação se reproduzindo o avanço mercantilizado de uso dos espaços em um ritmo que não cessa e tende a acelerar-se cada vez mais enquanto houver espaços a serem explorados.
O capital avança em direção dos "espaços vazios" sem se preocupar com o dia de amanhã numa onda de emergência criada por ele mesmo onde a acumulação material se concentra cada vez mais nas mãos de poucos e a maior parte dos grupos humanos se vê cada vez mais alijada de participar efetivamente desse processo.
A problemática da moradia em São Paulo é também um retrato de um país que há muito está em débito consigo mesmo, fruto de um Estado falido, incapaz de trabalhar de forma mais justa a coletividade. Lugar onde se prega o sustentável mas se aplica justamente práticas contrárias ao mesmo princípio. Como resultado, temos mais violência, o aprofundamento da competitividade na luta por espaços, o empobrecimento das massas, mais injustiça em todos os níveis imagináveis e o constante desrespeito aos direitos humanos entre outros direitos fundamentais. Ao mesmo tempo, o tão propagado desenvolvimento é usufruído apenas por uma pequena parcela de atores globais representados pelos grandes bancos e corporações transnacionais, verdadeiros manipuladores do poder do dinheiro e da informação. Atores que mantém boa parte da população "prisioneira e cativa" na era das telas de TV, Internet e celulares, os quais correspondem positivamente a cada nova ordem imposta pelo capital.


[1] Tradução minha para o original em inglês. "The process masks and fetichizes, achieves growth though creative destruction, creates new wants and needs, exploits the capacity for human labor and desire, transform spaces and speed up the pace of life. It produces problems of overaccumulation for which there are but a limited number of possible solutions." (HARVEY, 1990, p. 343)