Um dos debates mais quentes do ano foi sobre um livro didático acusado
de ensinar regras de português erradas (na verdade, ninguém leu o livro;
foram lidas algumas frases soltas de uma das páginas de um dos
capítulos). A acusação mereceu diversas manifestações de especialistas,
que tentaram mostrar que uma língua é um fenômeno mais complexo do que
parece ser quando apresentada apenas em termos prescritivos.
Um dos pequenos avanços da mídia (que, no quesito, representa grande parte da sociedade instruída) foi reconhecer que as teorias e as pesquisas linguísticas têm legitimidade. Mas acha que devem restringir-se à universidade. Para um linguista, tal posição equivale a sustentar que só se deve ensinar reprodução na universidade. Até o fim do colegial, deve-se ensinar aos alunos que as crianças são trazidas pela cegonha.
Um dos itens do debate foi o preconceito linguístico; questionou-se sua existência. Chegou-se a afirmar que a “defesa” de traços da fala popular produziria como um dos efeitos um preconceito às avessas, contra os que falam corretamente. Foi uma das leituras mais desastrosas que a mídia conseguiu fazer da questão.
O que seria o tal preconceito linguístico? Ele existe? Se sim, qual a sua natureza? Se deve ser combatido, como todos os preconceitos, quais deveriam ser as armas de combate?
Talvez seja bom começar por uma definição de preconceito. A do Dicionário Houaiss é bastante esclarecedora. Segundo essa fonte, preconceito é “qualquer opinião ou sentimento, quer favorável quer desfavorável, concebido sem exame crítico”, o que em seguida é mais bem especificado: “ideia, opinião ou sentimento desfavorável formado a priori, sem maior conhecimento, ponderação ou razão”.
Na segunda acepção, o preconceito é definido como “atitude, sentimento ou parecer insensato, especialmente de natureza hostil, assumido em consequência da generalização apressada de uma experiência pessoal ou imposta pelo meio; intolerância”. Os preconceitos que se tornaram mais conhecidos e cujo combate é mais aceito são o racial e o de gênero.
A expressão “preconceito linguístico” é mais ou menos corrente entre leitores de sociolinguística, disciplina que estuda o fenômeno da variação linguística, os fatores que a condicionam e as atitudes da sociedade em relação às variedades.
Fatos incontornáveis
A qualificação de certas atitudes como preconceito linguístico se baseia em diversas teses. A principal, mãe de todos os desdobramentos, é que haveria línguas primitivas, cujos falantes seriam incapazes de realizar determinadas operações mentais (faltaria clareza ou precisão), seriam incapazes de proceder a certas generalizações (suas línguas não teriam termos abstratos), seu conhecimento do mundo seria precário (expressariam seu ‘conhecimento’ em classificações confusas) etc. Enfim, certos povos (sempre os outros) seriam inferiores, e uma das razões, ou um dos reflexos, seria sua língua.
A tese de que há línguas primitivas tem uma descendência clara no domínio da variação: dialetos populares teriam defeitos análogos aos das línguas primitivas. Só a comparação é outra: no primeiro caso, com as línguas ditas civilizadas; no segundo, com a norma culta.
Já que o preconceito consiste em considerar alguém ou algum grupo inferior ou incapaz (mulheres para os homens, negros ou indígenas para os brancos etc.), a analogia em relação à diversidade das línguas se aplica quase automaticamente: os diferentes são portadores de defeitos.
Ora, qualquer tentativa de provar que tais línguas são primitivas esbarra em fatos incontornáveis. Vejamos alguns fatos que contradizem os principais preconceitos:
(a) sobre a propalada ausência de termos abstratos em línguas de “selvagens”, Lévi-Strauss apresenta diversos contra-exemplos, dentre os quais um do chinuque, língua em que traduziria “o homem mau matou a pobre criança” por “a maldade do homem matou a pobreza da criança”;
(b) sobre línguas “evoluídas” deverem ser claras (o que implicaria que fossem flexionais, como o latim e o grego, e, em grau menor, as línguas românicas), basta considerar o caso do inglês, que praticamente não tem flexões; you are pode significar “você é”, “tu és”, “vós sois”, “vocês são”, “o senhor é”, “os senhores são”;
(c) se um dialeto fosse obscuro por ter poucas flexões (“os menino tá muito sujo”), teríamos que dizer que o inglês é uma língua obscura, de difícil compreensão. Ora, ao contrário, ela em geral é avaliada como ótima exatamente para a ciência, que demandaria uma linguagem clara e unívoca. Uma oração como a do exemplo é absolutamente clara (espero sinceramente que todos os leitores a compreendam!). Apenas foram eliminadas, nessa gramática, todas as marcações de plural redundantes (como no inglês, exceto pela palavra que recebe a marca);
(d) o mesmo dialeto que é considerado errado ou precário por eliminar redundâncias também é considerado errado ou precário quando introduz redundâncias como “sair para fora” ou “entrar para dentro”, “subir para cima” e “descer para baixo”; são, de novo, construções análogas às do inglês, que ninguém estranha ou critica;
(e) línguas primitivas teriam poucas palavras (!) e elas teriam muitos sentidos, que dependeriam do contexto. Mas esta é uma propriedade de qualquer léxico. Basta espiar entradas como “ponto” em um dicionário de português e pack em um de inglês.
Equívoco secular
Voltemos ao Houaiss, que assim define preconceito linguístico: “Qualquer crença sem fundamento científico acerca das línguas e de seus usuários, como, p. ex., a crença de que existem línguas desenvolvidas e línguas primitivas, ou de que só a língua das classes cultas possui gramática, ou de que os povos indígenas da África e da América não possuem línguas, apenas dialetos.”
No fundo, o preconceito linguístico é um preconceito social. É uma discriminação sem fundamento que atinge falantes inferiorizados por alguma razão e por algum fato histórico. Nós o compreenderíamos melhor se nos déssemos conta de que “falar bem” é uma regra da mesma natureza das regras de etiqueta, das regras de comportamento social. Os que dizemos que falam errado são apenas cidadãos que seguem outras regras e que não têm poder para ditar quais são as elegantes.
Isso não significa dizer que a norma culta não é relevante ou que não precisa ser ensinada. Significa apenas que as normas não cultas não são o que sempre se disse delas. E elas mereceriam não ser objeto de preconceito.
A leitura de um ou dois capítulos de qualquer manual de linguística poderia fazer com que todos se convencessem de que estivemos equivocados durante séculos em relação a conceitos como “falar errado”. Para combater esse preconceito, basta um pouco de informação.
***
[Sírio Possenti é professor do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas
Um dos pequenos avanços da mídia (que, no quesito, representa grande parte da sociedade instruída) foi reconhecer que as teorias e as pesquisas linguísticas têm legitimidade. Mas acha que devem restringir-se à universidade. Para um linguista, tal posição equivale a sustentar que só se deve ensinar reprodução na universidade. Até o fim do colegial, deve-se ensinar aos alunos que as crianças são trazidas pela cegonha.
Um dos itens do debate foi o preconceito linguístico; questionou-se sua existência. Chegou-se a afirmar que a “defesa” de traços da fala popular produziria como um dos efeitos um preconceito às avessas, contra os que falam corretamente. Foi uma das leituras mais desastrosas que a mídia conseguiu fazer da questão.
O que seria o tal preconceito linguístico? Ele existe? Se sim, qual a sua natureza? Se deve ser combatido, como todos os preconceitos, quais deveriam ser as armas de combate?
Talvez seja bom começar por uma definição de preconceito. A do Dicionário Houaiss é bastante esclarecedora. Segundo essa fonte, preconceito é “qualquer opinião ou sentimento, quer favorável quer desfavorável, concebido sem exame crítico”, o que em seguida é mais bem especificado: “ideia, opinião ou sentimento desfavorável formado a priori, sem maior conhecimento, ponderação ou razão”.
Na segunda acepção, o preconceito é definido como “atitude, sentimento ou parecer insensato, especialmente de natureza hostil, assumido em consequência da generalização apressada de uma experiência pessoal ou imposta pelo meio; intolerância”. Os preconceitos que se tornaram mais conhecidos e cujo combate é mais aceito são o racial e o de gênero.
A expressão “preconceito linguístico” é mais ou menos corrente entre leitores de sociolinguística, disciplina que estuda o fenômeno da variação linguística, os fatores que a condicionam e as atitudes da sociedade em relação às variedades.
Fatos incontornáveis
A qualificação de certas atitudes como preconceito linguístico se baseia em diversas teses. A principal, mãe de todos os desdobramentos, é que haveria línguas primitivas, cujos falantes seriam incapazes de realizar determinadas operações mentais (faltaria clareza ou precisão), seriam incapazes de proceder a certas generalizações (suas línguas não teriam termos abstratos), seu conhecimento do mundo seria precário (expressariam seu ‘conhecimento’ em classificações confusas) etc. Enfim, certos povos (sempre os outros) seriam inferiores, e uma das razões, ou um dos reflexos, seria sua língua.
A tese de que há línguas primitivas tem uma descendência clara no domínio da variação: dialetos populares teriam defeitos análogos aos das línguas primitivas. Só a comparação é outra: no primeiro caso, com as línguas ditas civilizadas; no segundo, com a norma culta.
Já que o preconceito consiste em considerar alguém ou algum grupo inferior ou incapaz (mulheres para os homens, negros ou indígenas para os brancos etc.), a analogia em relação à diversidade das línguas se aplica quase automaticamente: os diferentes são portadores de defeitos.
Ora, qualquer tentativa de provar que tais línguas são primitivas esbarra em fatos incontornáveis. Vejamos alguns fatos que contradizem os principais preconceitos:
(a) sobre a propalada ausência de termos abstratos em línguas de “selvagens”, Lévi-Strauss apresenta diversos contra-exemplos, dentre os quais um do chinuque, língua em que traduziria “o homem mau matou a pobre criança” por “a maldade do homem matou a pobreza da criança”;
(b) sobre línguas “evoluídas” deverem ser claras (o que implicaria que fossem flexionais, como o latim e o grego, e, em grau menor, as línguas românicas), basta considerar o caso do inglês, que praticamente não tem flexões; you are pode significar “você é”, “tu és”, “vós sois”, “vocês são”, “o senhor é”, “os senhores são”;
(c) se um dialeto fosse obscuro por ter poucas flexões (“os menino tá muito sujo”), teríamos que dizer que o inglês é uma língua obscura, de difícil compreensão. Ora, ao contrário, ela em geral é avaliada como ótima exatamente para a ciência, que demandaria uma linguagem clara e unívoca. Uma oração como a do exemplo é absolutamente clara (espero sinceramente que todos os leitores a compreendam!). Apenas foram eliminadas, nessa gramática, todas as marcações de plural redundantes (como no inglês, exceto pela palavra que recebe a marca);
(d) o mesmo dialeto que é considerado errado ou precário por eliminar redundâncias também é considerado errado ou precário quando introduz redundâncias como “sair para fora” ou “entrar para dentro”, “subir para cima” e “descer para baixo”; são, de novo, construções análogas às do inglês, que ninguém estranha ou critica;
(e) línguas primitivas teriam poucas palavras (!) e elas teriam muitos sentidos, que dependeriam do contexto. Mas esta é uma propriedade de qualquer léxico. Basta espiar entradas como “ponto” em um dicionário de português e pack em um de inglês.
Equívoco secular
Voltemos ao Houaiss, que assim define preconceito linguístico: “Qualquer crença sem fundamento científico acerca das línguas e de seus usuários, como, p. ex., a crença de que existem línguas desenvolvidas e línguas primitivas, ou de que só a língua das classes cultas possui gramática, ou de que os povos indígenas da África e da América não possuem línguas, apenas dialetos.”
No fundo, o preconceito linguístico é um preconceito social. É uma discriminação sem fundamento que atinge falantes inferiorizados por alguma razão e por algum fato histórico. Nós o compreenderíamos melhor se nos déssemos conta de que “falar bem” é uma regra da mesma natureza das regras de etiqueta, das regras de comportamento social. Os que dizemos que falam errado são apenas cidadãos que seguem outras regras e que não têm poder para ditar quais são as elegantes.
Isso não significa dizer que a norma culta não é relevante ou que não precisa ser ensinada. Significa apenas que as normas não cultas não são o que sempre se disse delas. E elas mereceriam não ser objeto de preconceito.
A leitura de um ou dois capítulos de qualquer manual de linguística poderia fazer com que todos se convencessem de que estivemos equivocados durante séculos em relação a conceitos como “falar errado”. Para combater esse preconceito, basta um pouco de informação.
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[Sírio Possenti é professor do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas