terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Os Mediadores da Exploração e Manipulação de Classes

Na foto, Angélica (empregada doméstica), William Bonner (carteiro), Ana Maria (cozinheira), Xuxa (babá), Renato Aragão (eletricista), Fausto Silva (garçom), Luciano Huck (taxista), Serginho Groisman (sorveteiro) e Dedé Santana (eletricista).

A chamada de fim de ano criada pela Rede Globo distorce a realidade, inverte os papéis, manipula os telespectadores com uma grotesca ilusão. Uma subversão da realidade. O staff da emissora usualmente classificado como "elenco de artistas", são funcionários da TV, muitos dos quais nem moram no Brasil. Alguns  se tornaram empresários riquíssimos e que não tem contato algum com a realidade vivida pelos brasileiros. Apesar disso, sabemos seus nomes muito bem, não é mesmo?! Claro! Eles estão "dentro" de nossas casas todos os dias. Cria-se assim a ilusão de que nós os conhecemos. Pura ilusão. A idéia é a seguinte: olha como gente rica é gente boa. Gente que nem a gente. É natal! 
É lamentável que a identificação do nosso povo com essa gente da TV seja tão grande, resultado de décadas de uma domesticação televisiva que se mantém há muitos anos.
O cantor Roberto Carlos poderia muito bem aparecer de Papai Noel, já que só dá as caras na mídia, uma vez por ano e pra cantar sempre as mesmas músicas nessa mesma época há mais de 30 anos. Será que estamos condenados a essa fábrica genérica de Hollywwod reproduzindo no Brasil,  o american dream com "a nossa cara"?! Por que não podemos ter uma TV com gente de verdade?
Gente que nem a gente mesmo, não esses personagens de uma beleza "plástica" e vazia. Me permitam aqui parodiar um pouco o jingle global dizendo que só assim, poderemos verdadeiramente cantar que os nossos sonhos serão verdade. Aliás o nosso futuro ainda não começou por causa dessa gente também.


Roberto Carlos, assim como Papai Noel, só aparece no Natal. Por isso,também nem parece gente de verdade.

Não deixo aqui o link para o vídeo porque basta ligar a TV pra assistir a vinheta da Globo. Deixo sim, o texto do professor Eustáquio, também poeta e escritor, que me trouxe a reflexão sobre o tema. Nele, o professor destaca 3 pontos:  Grotesca Ilusão, Homenagem de Fim de Ano e Mediadores da Exploração de Classe.

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A carnavalização da cultura popular

No livro A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1965), o pensador russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) desenvolveu o conceito de carnavalização e o identificou intrinsecamente à cultura popular, pois esta, ao valorizar a dimensão corporal da vida, tende a ridicularizar, parodiar e subverter a seriedade, os rituais fechados e as transcendentais pompas legalistas dos poderes instituídos.
Embora analise a carnavalização na literatura do escritor renascentista francês François Rabelais (1494-1553), precisamente tendo em vista a obra cômicaGargantua e Pantagruel (1552), penso que os argumentos de Bakhtin podem ser ampliados de tal sorte a admitirmos que existe carnavalização para valer quando uma manifestação cultural – e política – debocha de toda e qualquer hierarquia, demonstrando, via riso, informalidade, trapaça e valorização do cotidiano, o quanto os lugares de poder, quaisquer que sejam, são ridículos e farsescos.
A carnavalização, sob esse ponto de vista, é uma questão de povo, pois é o povo que, não ocupando poder institucional algum, ridiculariza todos os poderes existentes, seja imitando-os de forma caricatural, seja ridicularizando-os, seja simplesmente, com muito artifício e avacalhação, divertindo-se, sem lei e sei moral, através da festa carnavalesca de um mundo sem poderes, com seus falsos legalismos e rituais hierárquicos de exclusão, uma vez que, para ficar no óbvio, a força da lei só vale, em qualquer época histórica, para quem não detém, de origem, o poder soberano.
Uma grotesca ilusão
Penso, entretanto, que o conceito de carnavalização de Bakhtin tal como exposto acima foi plenamente válido até o advento da civilização midiática (1945) e, portanto, não vale mais para a nossa atual época, neoliberal, pois hoje é o inverso do inverso que ocorre: as elites econômicas é que carnavalizam o povo, ora imitando ser mais povo que o povo, ora inventando, como ocorre com a cultura de massa, uma civilização, a nossa, em que todos gostamos de tudo que o povo gosta, independente de nossa classe social e desde que, obviamente, não deixemos de ser proprietários das posses que temos, pois as diferenças econômicas, é o que dizemos para nós mesmos, são necessárias, desejáveis e efetivamente desejadas.
De forma farsesca e ao mesmo tempo trágica, são, no atual presente histórico, as elites que se apropriam da chamada cultura popular e a carnavalizam, produzindo o efeito ilusório de que vivemos numa civilização de oportunidades iguais, uma vez que cultivamos os mesmos artistas midiáticos, os mesmos gêneros musicais, os mesmos filmes, os mesmos programas de auditório, assim como desejamos as mesmas reificadas mercadorias.
Sob esse ponto de vista, é possível dizer que, na atual pós-modernidade neoliberal, a própria ideia de comunismo é carnavalizada pelas elites econômicas, pois produzimos carnavalescamente uma civilização em que a hierarquia cultural foi rompida e, por isso mesmo, tal como a carnavalização de Bakhtin, vivemos com júbilo a grotesca ilusão de que somos corporalmente comuns, no que diz respeito a nossas ações e vivências culturais.
A homenagem de fim de ano
A cultura de massa, mais do que o lugar de rompimento entre o erudito e o popular, a alta e a baixa cultura, constitui, hoje, o massificado horizonte midiático a partir do qual as elites econômicas carnavalizam promiscuamente a cultura popular, destronando-a de si mesma e transformando-a em carnavalesco comunismo cultural pleno de hierarquias econômicas, produzindo a ilusão de ótica, por tabela, de que o rico é gente boa, pois é povo como a gente.
Vivemos na época do comunismo cultural do baixo-ventre, na qual todos desejamos sexualmente a todos, independente de classe social, etnia e, cada vez mais, de gênero, desde, é claro, que não nos misturemos economicamente e que nos mantenhamos em nossos hierárquicos lugares eternos: o pobre na favela e o rico em condomínios fechados, até porque o apoteótico altar da arquitetura da civilização do comunismo cultural do baixo-ventre afinal de contas é, via de regra, ocupado por famosas pessoas tão simples e informais como a gente e, ainda tal como a gente, são famosas pessoas que gostam precisamente da mesma música de Zé Camargo e Luciano que também gosto ou deveria gostar, se não quiser ser acusado de elitista e reacionário.
É nesse contexto que devemos analisar a lógica subjacente e ao mesmo tempo carnavalescamente escrachada da atual homenagem de fim de ano da TV Globo, com sua carnavalesca letra que assim começa: “Hoje é um novo dia...”, o dia em que Faustão se fantasia de garçom, Luciano Huck, por sua vez, de taxista; Ana Maria Braga, de empregada doméstica; William Bonner, de carteiro, a Xuxa, de babá e, por fim, a angelical Angélica de faxineira.
A homenagem global de fim de ano, dessa forma, carnavaliza e expande o comunismo cultural popular do baixo-ventre, invertendo, fantasiosamente, a hierarquia econômica: Faustão, que nem no Brasil mora, é um simples e popular garçom; Xuxa, que igualmente tem os Estados Unidos como primeira moradia hierárquica, é uma amorosa e cuidadosa babá popular de não menos fantasiadas criancinhas burguesas; William Bonner, exemplar carteiro que não deve ter participado da última greve da categoria, olha aí, não ganha como supúnhamos, a fortuna que recebe por ano, posto que vive do miserável salário que os carteiros recebem.
Mediadores da exploração de classe
Viva o comunismo cultural da cultura de massa! Nele e através dele todas as ilusões são possíveis, pois o novo dia já começou: sejamos os carteiros, o William Bonner; as babás, a Xuxa; os taxistas, o Luciano Huck; as empregadas domésticas, a Ana Maria Braga; os garçons, o Faustão e as faxineiras, a angelical Angélica.
Tenhamos, como primeira moradia hierárquica, tal como eles, nossa mansão em Miami, pois tal como a sequência da letra, as alegrias serão de todos, no fantasioso comunismo cultural da cultura de massa, desde que não subvertamos a hierarquia econômica, denunciando e destronando a apoteose dos escandalosos e corruptos salários e rendas publicitárias que esse povo global recebe, como aplicados medíocres funcionários mediadores de nossa domesticação generalizada, porque, nesse caso, um Faustão ou uma Xuxa ou uma Ana Maria Braga ou um William Bonner ou um Luciano Huck ou uma Angélica imediatamente retiraria a fantasia de explorado e vestiria sem dó e piedade a fantasia militar da repressão e criminalização do subversivo e intrinsecamente (porque real) carnavalesco povo.
“Cassetete neles!”, “Salvem-nos o golpe militar idealizado pela embaixada americana do Brasil”, diriam raivosos.
Aí sim, caso insistíssemos em nossa primavera árabe – ao estilo da potência insubmissa da carnavalização da apoteose midiática, protagonizada pelo povo brasileiro –, aí sim poderíamos, através de uma subversiva festa popular, dizer: “Hoje é um novo dia, de um novo tempo, porque sem realidade de explorados, pois sem opressores, logo sem Xuxa, Faustão, Luciano Huck, Angélica, Ana Maria Braga, William Bonner e outros medíocres mediadores da exploração de classe nacional e internacional.”
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[Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor da Universidade Federal do Espírito Santo]

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