Com exceção de alguns especialistas, todos fomos levados a crer que uma gramática é um compêndio de regras que devem ser seguidas. Ela é praticamente reduzida a uma lista de acertos, o que provoca o surgimento de listas de erros.
Uma enormidade de apostilas, sites, blogues de especialistas em ‘reprodução’ fornece a curiosos ou a pseudonecessitados outras listas com as formas que podem e as que não poderiam empregar em seus relatórios (mas empregam...).
É verdade que esse tipo de regra (listas?) é uma gramática, mas apenas em um sentido da palavra e que leva em conta apenas uma das funções que tais obras desempenham em sociedades como a nossa.
Sua principal função é manter e realimentar o imaginário sobre uma suposta língua correta e bonita, sempre mais antiga. Outra função é contribuir com um ingrediente muito importante para cimentar a ‘unidade nacional’, com a ideia de que somos um povo que falamos uma só língua (tese fácil de desmentir, aliás, mas suficientemente forte para resistir a argumentos e a fatos).
Nunca se ouve, em uma festa ou em mesa-redonda, alguém perguntar pela classificação de “exceto”, ou se “fantasma” é abstrato. Mas todos querem saber se a pronúncia correta é “ibero” ou “ibero” (as letras em negrito representam as sílabas tônicas), se é ou não um sinal do fim do mundo que se diga “Minha bolsa cabe de tudo” e onde vamos parar se os jovens não distinguem mais “ascendência” de “descendência” e se escrevem “ele se difere dela”, em vez de “se diferencia”.
Enfim, as gramáticas não só prescrevem. Elas também descrevem e tentam explicar fatos de linguagem que ocorrem, seja na escrita (que é muito diversificada), seja na fala (ainda mais variada).
Quantos pronomes (de fato)?
Uma gramática, mesmo dessas conhecidas (são mesmo conhecidas, ou só conhecemos seus subprodutos simplificados?), não contém apenas regras que indicam como falar e, principalmente, escrever.
As gramáticas também contêm descrições e análises e, portanto, uma metalinguagem (fonema, radical, passiva sintética, oração, subordinada, substantivo abstrato, adjetiva explicativa etc.). Uma das limitações dessas gramáticas é que só tentam descrever uma determinada amostra da língua escrita, relacionada com a literária.
Para mostrar a diferença entre uma gramática que descreve fatos e uma que basicamente prescreve regras, considere-se o caso dos pronomes pessoais e a conjugação verbal a eles associada.
Conforme qualquer gramática (ou manual escolar), os pronomes pessoais retos são “eu, tu, ele/a, nós, vós, eles/as”. Mas quem, atualmente, fala ou escreve “vós”, ou mesmo “tu”? Não é um fato que, para muitos (a maioria) falantes cultos do português do Brasil, os pronomes são “eu, você, ele/a, nós (a gente), vocês, eles/as”?
No português culto antigo, havia seis formas verbais. No atual, há quatro (quando se diz “nós”) e três (quando se diz “a gente”).
Como as línguas são variáveis, este quadro é parcial. Regional, provavelmente. É que há regiões ou ocasiões em que se usa “tu”. Aliás, com duas conjugações verbais, sendo que uma é mais formal (“tu lavas”) e a outra, mais informal (“tu lava”). São fatos.
Uma gramática adequada apresenta, classifica, descreve e explica fatos. Por exemplo, quanto mais numerosas forem as formas verbais e quanto mais houver correspondência de cada uma delas com um pronome (ou um tipo de sujeito), maior a probabilidade de que o sujeito possa ser ‘omitido’: quem diz “lavamos” não precisa (mas pode) dizer “nós”; quem diz “lava” precisa explicitar o sujeito: tu, ele, a gente; exatamente como se aprende essa regra em inglês, língua cujos verbos quase não têm flexões ‘pessoais’.
Quem apita?
Infelizmente, em relação às línguas, mais do que em relação a qualquer outro tópico, aprendemos que há formas corretas e formas erradas. O que representa entregar a arbitragem sobre as formas da língua a critérios sociais mais que a critérios estruturais e mesmo históricos. É que uma análise histórica desmente o mito de várias maneiras.
Mostra que certas formas analisadas como erros atuais de pessoas pouco escolarizadas são formas antigas que foram preservadas em certas camadas da população. Por exemplo, “ele pissói” tem a ver com a forma “pessuir”, que é um arcaísmo, e não um ‘caipirismo’.
Camões escreveu: “cesse tudo o que a musa antiga canta / que outro valor mais forte se alevanta”, mas todos achamos que “alevantar” é erro de caipira.
A história desmente o mito da decadência das línguas. O principal argumento é que nunca houve línguas ‘perfeitas’. Se todas elas mudam com o passar do tempo (um dos poucos fatos não controversos no campo), então não há erros, do ponto de vista da estrutura da língua.
De fato, o que classificamos como erros são apenas formas que não têm prestígio em determinada sociedade, em determinada época. Mas as mesmas formas podem ter tido prestígio em época anterior ou vir a tê-lo em fase posterior.
Pode parecer um escândalo (comparável à proposição do heliocentrismo), mas um analista ‘sem ideologia’, que visse apenas os fatos, sem considerar o valor que uma sociedade lhes confere, diria que
eu lavo
(vo)cê lava
ele lava
nós lava
(v)cês lava
eles lava
é uma conjugação gramatical, que segue regras (no sentido de que é regular). Nenhum dos falantes que usam estas formas (e eles existem) está errado (no sentido de que não sabe sua língua), nem é verdade que fala de qualquer jeito (não se ouve “nós vou” e “eu vai”). Nem é verdade que assim não nos compreendemos (se alguém não compreende isso, então está mal!). Tampouco é verdade que a língua está em decadência.
Fora de moda
Mudar não é decair. É assumir novas formas, como ensina a evolução das espécies, e também a moda e a tecnologia. Dizer “vós ides” é como usar gravata borboleta ou peruca empoada. Claro que não é um erro. É uma forma antiga, com efeitos de sentido específicos.
E o que faria a escola se analisasse e lidasse com a variedade da língua que é de fato a norma culta de hoje (eu disse “norma culta”!)? Muitas coisas poderiam mudar (para melhor, com certeza).
Faço apenas dois comentários, por ora: a) é claro que ninguém vai ‘atualizar’ romances e poemas antigos (exceto, talvez, sua grafia) – que é preciso aprender a ler; b) qual professor espera que os alunos escrevam formas como “vós laváveis” nas redações?
Se podemos escrever “vocês lavam, amam, sofrem, vão”, por que devemos decorar “vós ides”, “vós fosseis” e preencher lacunas ‘corretas’ com essas flexões? Uma forma vale em uma aula e não vale na outra?
Imagine-se um professor de física ensinando Ptolomeu em uma aula e pedindo soluções newtonianas na seguinte! Não esqueçamos que a ‘tabela periódica’ de Aristóteles tinha quatro elementos: ar, água, terra e fogo. Quem a ensinaria hoje, a não ser como questão histórica?
***
[Sírio Possenti é professor no Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas]
Uma enormidade de apostilas, sites, blogues de especialistas em ‘reprodução’ fornece a curiosos ou a pseudonecessitados outras listas com as formas que podem e as que não poderiam empregar em seus relatórios (mas empregam...).
É verdade que esse tipo de regra (listas?) é uma gramática, mas apenas em um sentido da palavra e que leva em conta apenas uma das funções que tais obras desempenham em sociedades como a nossa.
Sua principal função é manter e realimentar o imaginário sobre uma suposta língua correta e bonita, sempre mais antiga. Outra função é contribuir com um ingrediente muito importante para cimentar a ‘unidade nacional’, com a ideia de que somos um povo que falamos uma só língua (tese fácil de desmentir, aliás, mas suficientemente forte para resistir a argumentos e a fatos).
Nunca se ouve, em uma festa ou em mesa-redonda, alguém perguntar pela classificação de “exceto”, ou se “fantasma” é abstrato. Mas todos querem saber se a pronúncia correta é “ibero” ou “ibero” (as letras em negrito representam as sílabas tônicas), se é ou não um sinal do fim do mundo que se diga “Minha bolsa cabe de tudo” e onde vamos parar se os jovens não distinguem mais “ascendência” de “descendência” e se escrevem “ele se difere dela”, em vez de “se diferencia”.
Enfim, as gramáticas não só prescrevem. Elas também descrevem e tentam explicar fatos de linguagem que ocorrem, seja na escrita (que é muito diversificada), seja na fala (ainda mais variada).
Quantos pronomes (de fato)?
Uma gramática, mesmo dessas conhecidas (são mesmo conhecidas, ou só conhecemos seus subprodutos simplificados?), não contém apenas regras que indicam como falar e, principalmente, escrever.
As gramáticas também contêm descrições e análises e, portanto, uma metalinguagem (fonema, radical, passiva sintética, oração, subordinada, substantivo abstrato, adjetiva explicativa etc.). Uma das limitações dessas gramáticas é que só tentam descrever uma determinada amostra da língua escrita, relacionada com a literária.
Para mostrar a diferença entre uma gramática que descreve fatos e uma que basicamente prescreve regras, considere-se o caso dos pronomes pessoais e a conjugação verbal a eles associada.
Conforme qualquer gramática (ou manual escolar), os pronomes pessoais retos são “eu, tu, ele/a, nós, vós, eles/as”. Mas quem, atualmente, fala ou escreve “vós”, ou mesmo “tu”? Não é um fato que, para muitos (a maioria) falantes cultos do português do Brasil, os pronomes são “eu, você, ele/a, nós (a gente), vocês, eles/as”?
No português culto antigo, havia seis formas verbais. No atual, há quatro (quando se diz “nós”) e três (quando se diz “a gente”).
Como as línguas são variáveis, este quadro é parcial. Regional, provavelmente. É que há regiões ou ocasiões em que se usa “tu”. Aliás, com duas conjugações verbais, sendo que uma é mais formal (“tu lavas”) e a outra, mais informal (“tu lava”). São fatos.
Uma gramática adequada apresenta, classifica, descreve e explica fatos. Por exemplo, quanto mais numerosas forem as formas verbais e quanto mais houver correspondência de cada uma delas com um pronome (ou um tipo de sujeito), maior a probabilidade de que o sujeito possa ser ‘omitido’: quem diz “lavamos” não precisa (mas pode) dizer “nós”; quem diz “lava” precisa explicitar o sujeito: tu, ele, a gente; exatamente como se aprende essa regra em inglês, língua cujos verbos quase não têm flexões ‘pessoais’.
Quem apita?
Infelizmente, em relação às línguas, mais do que em relação a qualquer outro tópico, aprendemos que há formas corretas e formas erradas. O que representa entregar a arbitragem sobre as formas da língua a critérios sociais mais que a critérios estruturais e mesmo históricos. É que uma análise histórica desmente o mito de várias maneiras.
Mostra que certas formas analisadas como erros atuais de pessoas pouco escolarizadas são formas antigas que foram preservadas em certas camadas da população. Por exemplo, “ele pissói” tem a ver com a forma “pessuir”, que é um arcaísmo, e não um ‘caipirismo’.
Camões escreveu: “cesse tudo o que a musa antiga canta / que outro valor mais forte se alevanta”, mas todos achamos que “alevantar” é erro de caipira.
A história desmente o mito da decadência das línguas. O principal argumento é que nunca houve línguas ‘perfeitas’. Se todas elas mudam com o passar do tempo (um dos poucos fatos não controversos no campo), então não há erros, do ponto de vista da estrutura da língua.
De fato, o que classificamos como erros são apenas formas que não têm prestígio em determinada sociedade, em determinada época. Mas as mesmas formas podem ter tido prestígio em época anterior ou vir a tê-lo em fase posterior.
Pode parecer um escândalo (comparável à proposição do heliocentrismo), mas um analista ‘sem ideologia’, que visse apenas os fatos, sem considerar o valor que uma sociedade lhes confere, diria que
eu lavo
(vo)cê lava
ele lava
nós lava
(v)cês lava
eles lava
é uma conjugação gramatical, que segue regras (no sentido de que é regular). Nenhum dos falantes que usam estas formas (e eles existem) está errado (no sentido de que não sabe sua língua), nem é verdade que fala de qualquer jeito (não se ouve “nós vou” e “eu vai”). Nem é verdade que assim não nos compreendemos (se alguém não compreende isso, então está mal!). Tampouco é verdade que a língua está em decadência.
Fora de moda
Mudar não é decair. É assumir novas formas, como ensina a evolução das espécies, e também a moda e a tecnologia. Dizer “vós ides” é como usar gravata borboleta ou peruca empoada. Claro que não é um erro. É uma forma antiga, com efeitos de sentido específicos.
E o que faria a escola se analisasse e lidasse com a variedade da língua que é de fato a norma culta de hoje (eu disse “norma culta”!)? Muitas coisas poderiam mudar (para melhor, com certeza).
Faço apenas dois comentários, por ora: a) é claro que ninguém vai ‘atualizar’ romances e poemas antigos (exceto, talvez, sua grafia) – que é preciso aprender a ler; b) qual professor espera que os alunos escrevam formas como “vós laváveis” nas redações?
Se podemos escrever “vocês lavam, amam, sofrem, vão”, por que devemos decorar “vós ides”, “vós fosseis” e preencher lacunas ‘corretas’ com essas flexões? Uma forma vale em uma aula e não vale na outra?
Imagine-se um professor de física ensinando Ptolomeu em uma aula e pedindo soluções newtonianas na seguinte! Não esqueçamos que a ‘tabela periódica’ de Aristóteles tinha quatro elementos: ar, água, terra e fogo. Quem a ensinaria hoje, a não ser como questão histórica?
***
[Sírio Possenti é professor no Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas]
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirTive o privilégio de participar de duas oficinas com essa fera.
ResponderExcluirO Pasquale é e continua querendo ser o Pop Star no uso Correto da linguagem oral e escrita. Mas...o Sírio é o Sírio,O Pasquale é o Pasquale...Modernidade e Tradicionalismo nunca irão respirar no mesmo espaço Lingüístico,um tenta se sobrepor ao outro.Dessa peleia eu tento extrair só a essência positiva...
Edi Viana
Um ótimo texto, por sinal muito didático.
ResponderExcluir