Lúcio Flávio Pinto em 14/02/2012 na edição 681 postado em http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed681_o_grileiro_vencera
Como já é do conhecimento público, em 1999 escrevi uma matéria no meu Jornal Pessoal
denunciando a grilagem de terras praticada pelo empresário Cecílio do
Rego Almeida, dono da Construtora C. R. Almeida, uma das maiores
empreiteiras do país, com sede em Curitiba, no Paraná. Embora nascido em
Óbidos, no Pará, Cecílio se estabeleceu 40 anos antes no Paraná. Fez
fortuna com o uso de métodos truculentos. Nada era obstáculo para a sua
vontade.
Sem qualquer inibição, ele recorreu a vários ardis para se apropriar de
quase cinco milhões de hectares de terras no rico vale do rio Xingu, no
Pará, onde ainda subsiste a maior floresta nativa do Estado, na margem
direita do rio Amazonas, além de minérios e outros recursos naturais.
Onde também está sendo construída a hidrelétrica de Belo Monte, para ser
a maior do país e a terceira do mundo.
Os 5 milhões de hectares já constituem território bastante para abrigar
um país, mas a ambição podia levar o empresário a se apossar de área
ainda maior, de 7 milhões de hectares, o equivalente a 8% de todo o
Pará, o segundo maior Estado da federação brasileira. Se fosse um
Estado, a “Ceciliolândia” seria o 21º maior do Brasil.
Mala suerte
Em 1996, na condição de cidadão, atendi a um chamado do advogado Carlos
Lamarão Corrêa, diretor do Departamento Jurídico do Iterpa (Instituto
de Terras do Pará), e o ajudei a preparar uma ação de anulação e
cancelamento dos registros das terras usurpadas por C. R. Almeida, com a
cumplicidade da titular do cartório de registro de imóveis de Altamira e
a ajuda de advogados inescrupulosos. A ação foi recebida pelo juiz da
comarca, Torquato de Alencar, e feita a averbação da advertência de que
aquelas terras não podiam ser comercializadas, por estarem sub-judice, passíveis de nulidade.
Os herdeiros do grileiro podem continuar na posse e no usufruto da
pilhagem, apesar da decisão, porque a grilagem recebeu decisão favorável
dos desembargadores João Alberto Paiva e Maria do Céu Cabral Duarte, do
Tribunal de Justiça do Estado. Deve-se salientar que essas foram as
únicas decisões favoráveis ao grileiro nas instâncias oficiais, que
reformaram a deliberação do juiz de Altamira.
Com o acúmulo de informações sobre o estelionato fundiário, os órgãos
públicos ligados à questão foram se manifestando e tomando iniciativas
para evitar que o golpe se consumasse. A Polícia Federal comprovou a
fraude e só não prendeu o empresário porque ele já tinha mais de 70
anos. O próprio poder judiciário estadual, que perdeu a jurisdição sobre
o caso, deslocado para a competência da justiça federal, a partir daí,
impulsionado pelo Ministério Público Federal, tomando rumo contrário ao
pretendido pelo grileiro, interveio no cartório Moreira, de Altamira, e
demitiu todos os serventuários que ali trabalhavam, inclusive a escrivã
titular, Eugênia de Freitas, por justa causa.
Carlos Lamarão, um repórter da revista Veja (que chegou a ser
mantido em cárcere privado pelo empresário e ameaçado fisicamente) e o
vereador Eduardo Modesto, de Altamira, processados na comarca de São
Paulo por Cecílio Almeida, foram absolvidos pela justiça paulistana. O
juiz observou que essas pessoas, ao invés de serem punidas, mereciam era
homenagens por estarem defendendo o patrimônio público, ameaçado de
passar ilicitamente para as mãos de um particular.
De toda história, eu acabei sendo o único punido. A ação do empreiteiro
contra mim, como as demais, foi proposta no foro de São Paulo. Seus
advogados sabiam muito bem que a sede da ação era Belém, onde o Jornal Pessoal
circula. Eles queriam deslocar a causa por saberem das minhas
dificuldades para manter um representante na capital paulista. A juíza
que recebeu o processo, a meu pedido, desaforou a ação para Belém, como
tinha que ser. Hoje, revendo o que passei nestes 11 anos de jurisdição
da justiça do Pará, tenho que lamentar a mala suerte de não ter ficado mesmo em São Paulo, com todas as dificuldades que tivesse para acompanhar a tramitação do feito.
Denúncias ignoradas
A justiça de São Paulo foi muito mais atenta à defesa da verdade e da
integridade de um bem público ameaçada por um autêntico “pirata
fundiário”, do que a justiça do Pará, formada por homens públicos que
deviam zelar pela integridade do patrimônio do Estado contra os
aventureiros inescrupulosos e vorazes. Esta expressão, “pirata
fundiário”, C. R. Almeida considerou ofensiva à sua dignidade moral e as
duas instâncias da justiça paraense sacramentaram como crime, passível
de indenização, conforme pediu o controverso empreiteiro.
Mesmo tendo provado tudo que afirmei na primeira matéria e nas que a
seguiram, diante da gravidade do tema, fui condenado, graças a outro
ardil, montado para que um juiz substituto, em interinidade de fim de
semana, pela ausência circunstancial da titular da 1ª Vara Cível de
Belém, sem as condições processuais para sentenciar uma ação de 400
páginas, me condenasse a pagar ao grileiro indenização de 8 mil reais
(em valores de então, a serem dramaticamente majorados até a execução da
sentença), por ofensa moral.
A sentença foi confirmada pelo tribunal, embora a ação tenha sido
abandonada desde que Cecílio do Rego Almeida morreu, em agosto de 2008;
mesmo que seus sucessores ou herdeiros não se tenham habilitado; mesmo
que o advogado, que continuou a atuar nos autos, não dispusesse de um
novo contrato para legalizar sua função; mesmo que o tribunal, várias
vezes alertado por mim sobre a deserção, tenha ignorado minhas petições;
mesmo que, obrigado a extinguir a minha punibilidade, arquivando o
processo, haja finalmente aberto prazo para a habilitação da parte
ativa, que ganhou novo prazo depois de perder o primeiro; mesmo que a
relatora, confrontada com a arguição da sua suspeição, que suscitei,
diante de sua gravosa parcialidade, tenha simplesmente dado um “embargo
de gaveta” ao pedido, que lhe incumbia responder de imediato,
aceitando-o ou o rejeitando, suspendendo o processo e afastando-se da
causa; mesmo que tudo que aleguei ou requeri tenha sido negado, para, ao
final, a condenação ser confirmada, num escabroso crime político
perpetrado pela maioria dos desembargadores do Tribunal de Justiça do
Pará que atuaram no meu caso, certamente inconformados com críticas e
denúncias que tenho feito sobre o TJE nos últimos anos, nenhuma delas
desmentida, a maioria delas também completamente ignorada pelos
magistrados citados nos artigos. Ao invés de cumprir as obrigações de
sua função pública, eles preferem apostar na omissão e na desmemoria da
população. E no acerto de contas com o jornalista incômodo.
Debate público
Depois de enfrentar todas as dificuldades possíveis, meus recursos
finalmente subiram a Brasília em dezembro do ano passado. O recurso
especial seguiu para o presidente do Superior Tribunal de Justiça,
ministro Ari Pargendler, graças ao agravo de instrumento que impetrei (o
Tribunal do Pará rejeitou o primeiro agravo; sobre o segundo já nada
mais podia fazer).
Mas o presidente do STJ, em despacho deste 7/2, disponibilizado no dia 10/2 e a ser publicado no Diário da Justiça
do dia 13/2, negou seguimento ao recurso especial. Alegou erros formais
na formação do agravo: “falta cópia do inteiro teor do acórdão
recorrido, do inteiro teor do acórdão proferido nos embargos de
declaração e do comprovante do pagamento das custas do recurso especial e
do porte de retorno e remessa dos autos”.
Recentemente, a justiça brasileira impôs novas regras para o
recebimento de agravos, exigindo dos recorrentes muita atenção na
formação do instrumento, tantos são os documentos cobrados e as suas
características. Podem funcionar como uma armadilha fatal, quando não
são atendidas as normas formais do preparo.
A falta de todos os documentos apontada pelo presidente do STJ me
causou enorme surpresa. Participei pessoalmente da reunião dos
documentos e do pagamento das despesas necessárias, junto com minha
advogada, que é também minha prima e atua na questão gratuitamente (ou
pró-bono, como preferem os profissionais). Não tenho dinheiro para
sustentar uma representação desse porte. Muito menos para arcar com a
indenização que me foi imputada, mais uma, na sucessão de processos
abertos contra mim pelos que, sendo poderosos, pretendem me calar, por
incomodá-los ou prejudicar seus interesses, frequentemente alimentados
pelo saque ao patrimônio público.
Desde 1992 já fui processado 33 vezes. Nenhum dos autores dessas ações
teve interesse em me mandar uma carta, no exercício de seu legítimo
direito de defesa. O Jornal Pessoal publica todas as cartas que lhe são enviadas, mesmo as ofensivas, na íntegra.
Também não publicaram matérias contestando as minhas ou, por qualquer
via, estabelecendo um debate público, por serem públicos todos os temas
por mim abordados. Foram diretamente à justiça, certos de contarem com a
cumplicidade daquele tipo de toga que a valente ministra Eliana Calmon,
Corregedora Nacional de Justiça, disse esconderem bandidos, para me
atar a essa rocha de suplícios, que, às vezes, me faz sentir no papel de
um Prometeu amazônico.
Momento difícil
Não por coincidência, fui processado pelos desembargadores João Alberto
Paiva e Maria do Céu Duarte, o primeiro tendo como seu advogado um
ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral, à frente de uma das mais
conceituadas bancas jurídicas do Distrito Federal. O ex-ministro José
Eduardo Alckmin, que também advogava para a C. R. Almeida, veio a Belém
para participar de uma audiência que durou cinco minutos. Mas
impressionou pela sua presença.
O madeireiro Wandeir dos Reis Costa também me processou. Ele funcionou
como fiel depositário de milhares de árvores extraídas ilegalmente da
Terra do Meio, que o Ibama apreendeu em Altamira. Embora se declarasse
pobre, ele se ofereceu para serrar, embalar e estocar a madeira enquanto
não fosse decidido o seu destino. Destino, aliás, antecipado pelo
extravio de toras mantidas em confinamento no próprio rio Xingu. Uma
sórdida história de mais um ato de pirataria aos recursos naturais da
Amazônia, bem disfarçado.
Apesar de todas essas ações e do martírio que elas criaram na minha
vida nestes últimos 20 anos, mantenho meu compromisso com a verdade, com
o interesse público e com uma melhor sorte para a querida Amazônia,
onde nasci. Não gostaria que meus filhos e netos (e todos os filhos e
netos do Brasil) se deparassem com espetáculos tão degradantes, como ver
milhares de toras de madeira de lei, incluindo o mogno, ameaçado de ser
extinto nas florestas nativas amazônicas, nas quais era abundante,
sendo arrastadas em jangadas pelos rios por piratas fundiários, como o
extinto Cecílio do Rego Almeida.
Depois de ter sofrido todo tipo de violência, inclusive a agressão
física, sei o que me espera. Mas não desistirei de fazer aquilo que me
compete: jornalismo. Algo que os poderes, sobretudo o judiciário do
Pará, querem ver extinto, se não puder ser domesticado conforme os
interesses dos donos da voz pública.
Vamos tentar examinar o processo e recorrer, sabendo das nossas
dificuldades para funcionar na justiça superior de Brasília, onde, como
regra, minhas causas sempre foram vencedoras até aqui, mesmo sem
representação legal junto aos tribunais do Distrito Federal.
Decidi escrever esta nota não para pressionar alguém nem para
extrapolar dos meus direitos. Decisão judicial cumpre-se ou dela se
recorre. Se tantos erros formais foram realmente cometidos no preparo do
agravo, o que me surpreendeu e chocou, paciência: vou pagar por um erro
que impedirá o julgador de apreciar todo meu extenso e profundo
direito, demonstrado à exaustão nas centenas de páginas dos autos do
processo. Terei que ir atrás da solidariedade dos meus leitores e dos
que me apoiam para enfrentar mais um momento difícil na minha carreira
de jornalista, com quase meio século de duração. Espero contar com a
atenção das pessoas que ainda não desistiram de se empenhar por um país
decente. [Belém (PA), 11 de fevereiro de 2012]
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