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sábado, 27 de outubro de 2012
Sem Terrinhas, as crianças do MST .
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Ser indígena no Brasil - Texto do Blog Almoço das Horas.
A recente divulgação da carta
que uma comunidade indígena Guarani-Kaiowá de Dourados (MS) enviou à Justiça
Federal pedindo que, uma vez que não lhes é permitido viver da forma que
consideram digna, seja logo decretada a morte de toda a comunidade, por cruel
que pareça, não deveria causar espanto. Condenados à morte, sejamos sinceros,
os índios brasileiros estão há mais de 500 anos, mas a execução da sentença é
lenta, torturante e cínica.
O que espanta, desta vez, é que
os próprios Guarani-Kaiowá tenham pedido ao seu inimigo mais ou menos declarado
– esta coisa que insistimos em tratar como “civilização” – que seja mais
sincero. Sim, mais sincero e diga claramente que o índio não interessa, não se
encaixa no modo de vida a que todos, sem privilégios (ouçam o eco
iluminista...), estamos condenados.
Aprendemos com Marx que o
capital libertou o trabalhador da escravidão à força, típica de formações
econômicas pré-capitalistas, para submetê-lo a uma forma diversa de escravidão:
o trabalho assalariado, a compra e venda da força de trabalho. (Sim, ainda há
trabalho escravo – e ele não é incompatível com o capitalismo. Apenas não pode
ser a regra, porque a valorização do capital depende de sua circulação também
na forma de salário, o que não impede que um ou outro capitalista faça uso da
extração violenta da força de trabalho.)
O trabalho como mercadoria é –
em regra, insisto – o único compatível com uma sociedade em que tudo é
mercadoria, em que o acesso aos bens indispensáveis à existência passa
inescapavelmente pelo mercado: pagou, tem; não pagou, não tem. Ponto final. É
óbvio, neste esquema rigoroso de trocas, que não se tolere qualquer exceção à
lógica mercantil. Em outras palavras, o que o capitalismo não tolera é a
manutenção, em seu mundo, do que não é mercadoria e, ainda por cima, impede o
livre desenvolvimento de suas forças.
O que são, afinal, os índios
para a ordem capitalista? Um ônus, um entrave, uma aberração, mas que, por não
ser conveniente à “civilização” assim declará-los, recebem da nossa
Constituição instrumentos para sua proteção que são constantemente
“desmoralizados” (e é inevitável usar aqui esta palavra porque a proteção aos
índios assume exatamente uma feição moral na ordem jurídica, ao mostrar como
somos gratos e responsáveis com nossas, digamos, “origens”), como na decisão da
Justiça Federal que exterminou, por enquanto, a paciência dos índios e sua
esperança de viver no espaço que a “civilização” reservou àqueles que a antecederam.
E sobreviveram à sua afirmação.
A carta à Justiça Federal não
deixa dúvida: os Guarani-Kaiowá cansaram de reivindicar o direito de sobreviver
como índios e não aceitam viver senão como índios. Não aceitam migrar para o
regime do trabalho precário (prestado, no geral, a quem tomou suas terras) ou
da mendicância às margens do exuberante mundo das mercadorias. O “bilhete
suicida” que essa comunidade manda para nós, não o tomem como chantagem,
“drama” etc. É um “basta”, um “chega”, mas principalmente uma prova de que os
índios, com sua habitual sabedoria, entenderam melhor do capitalismo e de sua
“civilização” do que nós, que nele estamos afundados até o pescoço – e um pouco
mais.
Não só sua própria existência,
mas a forma como os índios insistem em mantê-la é uma grande afronta ao capital
e sua lógica. Vejam o que diz a carta: “Nós comunidades cultivamos o solo,
produzimos a alimentação aqui mesmo, plantamos mandioca, milho, batata-doce,
banana, mamão, feijão e criamos de animais domésticos, como galinhas e patos.
Aqui agora não passamos fome mais. As nossas crianças e adolescentes são bem
alimentadas e felizes, não estão pensando em prática de suicídio. Assim, há uma
década, nesses 12 hectares estamos tentando sobreviver de formas saudáveis e
felizes, resgatando o nosso modo de ser e viver Guarani-Kaiowá, toda a noite
participando de nosso ritual religioso jeroky e guachire”. Como assim
alimentadas, saudáveis e felizes? Sem ter pago por isso? Este intercâmbio do
homem com seus iguais e com a natureza orientado apenas e tão-somente por suas
necessidades – do espírito e do estômago – é inadmissível para o capital. Mais
ainda: é sobre sua negação que se constituiu a forma como vivemos nos últimos 3
ou 4 séculos.
Os índios, neste contexto, são
não apenas supérfluos, mas uma espécie de mau exemplo a ser apagado do
horizonte de formas de “ser e viver” à venda – sim, à venda – em nosso tempo. O
que será de uma sociedade “sem alternativas” se tolerar uma forma de vida que
se nega à troca, ao dinheiro, à concentração da riqueza, ao desperdício? Desta
vez, a pedido dos próprios índios, a “civilização” terá oportunidade de
declarar o que pensa a este respeito.
A propósito, a Constituição
brasileira afirma que “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens” (art. 231).
Se nossas autoridades, que têm
sua função justificada por essa mesma Constituição, não se preocuparem em
respeitar tais palavras, será muito difícil evitar que se confirmem a tragédia
da carta dos índios e o pessimismo das linhas acima. Mas também será cada vez
mais difícil – creio e espero – manter os grupos oprimidos e suas
reivindicações dentro de comportados limites legais.
*Tarso de Melo (1976) é
advogado, mestre e doutor em Direito pela FDUSP, professor da FACAMP e
coordenador de pós-graduação da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo.
É um dos coordenadores da coleção Direitos e Lutas Sociais (Dobra/Outras
Expressões).
Fonte: Editora
Expressão Popular
quinta-feira, 4 de outubro de 2012
Reurbanização ou Apartheid Urbano?
Ensaio para a disciplina Fundamentos das Ciencias Sociais do curso de Ciencias Socias da UFPA/Marabá.
"A cidade não pára, a cidade só cresce,
o de cima sobe e o de baixo desce"
Chico Science
O desejo de ter uma casa própria está
no imaginário de boa parte da população brasileira, a ideia de possuir e
usufruir de um espaço seu pelo resto de sua vida já se estabeleceu como parte
essencial dos planos de milhares de brasileiros ao longo de nossa historia
recente. O governo brasileiro lançou ao longo das últimas décadas vários
programas de habitação, como o Minha Casa, Minha Vida, mais recentemente e vários
outros que em tese deveriam ajudar na superação de um problema social grave de
falta de planejamento urbano, de políticas publicas de habitação e saneamento
básico, mas que nunca deram conta de superar um déficit habitacional histórico.
A casa própria como realização de um sonho, continua para muitos, apenas um
sonho, pois na vida real, moradia no Brasil já se tornou há muito tempo, um verdadeiro
pesadelo. Em especial nas áreas urbanas e grandes centros, este útimo como o lugar
pra onde milhares de brasileiros se direcionaram nas últimas décadas na busca de
trabalho e sobrevivência, ou simplesmente de um lugar para viver.
O Estado brasileiro não tem sido capaz
de avançar nesse campo sem promover o terror urbano, a perseguição aos
moradores de favelas, executada friamente pela polícia com o aval do próprio Estado.
Além disso, temos como consequência dessas ações, a estigmatização dos
moradores de favelas, que em geral, são vistos como criminosos, sob olhares
racistas dos mais diversos setores da sociedade.
A luta por espaço nas grandes cidades
revela uma lógica perversa instaurada pela força do capital no Brasil desde o
início do século XX e que ganhou impulso ainda maior com o avanço dos grandes
projetos empreitados pelo governo militar a partir dos anos 60 e se perpetua
até hoje através de grandes corporações bancárias mundiais e empreiteiras da
área da construção civil.
Neste contexto, nos propomos a discutir
a partir de um olhar crítico, as sucessivas e sistemáticas remoções de
moradores de favelas na cidade de São Paulo, bem como os incêndios que vem
ocorrendo na cidade nos últimos meses, o que se percebe como mais uma etapa do
processo de expansão do capital engendrado por uma lógica perversa, criminosa e
de um total descaso com a vida e dignidade humanas; e que ainda encontra
respaldo legal e conivência do poder público, no que mais parece ser uma
"higienização" do espaço urbano com o objetivo de "abrir
caminho" para a especulação imobiliária voltada para a chamada reurbanização
seguindo as regras do capital que se pauta também em um discurso de urgência em
torno das expectativas de eventos esportivos internacionais como a Copa do
Mundo de 2014. Nas palavras de Garnier,
A chegada, aos bairros operários, de grupos sociais pertencentes às
classes de maior pode aquisitivo é vista, com frequência, como uma invasão.
Para a maior parte dos moradores afetados, essa mudança significa especulação
financeira e imobiliária, o que acelera sua expulsão e substituição por
cidadãos mais abastados. (GARNIER,2012)
Dentro
desta lógica, o espaço denominado de favela representa uma espécie de entrave
ao canteiro global de obras numa assimetria atroz que só pode ser interpretada
como uma forma gritante de um conflito de classes pela ocupação dos espaços
urbanos (HARVEY, 1990). Harvey também aponta que muito mais do que um conflito,
há sim, o reforço de uma divisão de classes, um separatismo urbano, pois com o
crescimento dos chamados setores de serviços, fomentados principalmente pela "terceirização"
de uma série de atividades comerciais, como
por exemplo, a construção de shopping centers e condomínios residenciais em
áreas de crescente urbanização; áreas consideradas também em crescente
valorização pelo mercado imobiliário. Dessa forma, as favelas recebem assim sua
"ordem de despejo" o que vai gradativamente sendo assimilado como um
processo natural ou como parte de um movimento maior que é compreendido como
necessário por grande parte da população cinicamente manipulada pelos meios de
comunicação de grande alcance como a TV e os jornais. Tudo em nome de um suposto
desenvolvimento e que agora se torna ainda mais perverso com o seu mais recente
adjetivo: sustentável.
O
fenômeno não é novidade e nem exclusividade de São Paulo ou de outras capitais
brasileiras. Cidades como Paris, Pequim, Nova York, Istambul e outras mundo
afora têm historias muito semelhantes e seguem dentro de um modelo de expansão
do capital globalizante gerador de um habitat mais clean para os vips
da sociedade. Enquanto isso, somente no ano de 2012, já foram registrados mais
de 33 incêndios em favelas na cidade de São Paulo e o número já pode ter
aumentado. Além do mais, ocorre de forma sistemática também, a remoção de
famílias para outras áreas longe do centro comercial e das áreas com crescente
valorização imobiliária. Geralmente, as remoções acontecem sob a promessa de uma
relocação dessas populações para novas moradias, mas na prática são
pouquíssimos os contemplados com algum tipo de indenização ou simplesmente a
espera pelo "novo lar" supera em muito o tempo anunciado antes da
remoção. É como se fosse preciso "maquear" a cidade para os grandes
negócios e a melhor maneira é eliminar qualquer obstáculo; logo, se as remoções
em massa não são suficientes, surgem também os incêndios para colaborar com o
processo pois são sempre declarados como fatalidade ou acidente inexplicável.
Os incêndios nas favelas de São Paulo já são objeto de investigações, o que
muito provavelmente não vai dar em nada, se considerarmos a possibilidade de
alguém realmente ter algum dia que pagar pelo crime.
Fatos
como esses ocorrem em todo o país quase que diariamente. O caso mais conhecido
recentemente foi a ação desastrosa e criminosa ocorrida em Pinheirinho, no
município de São José dos Campos à 97km da capital paulista, em que a polícia com
um mandato de reintegração de posse invadiu e atacou violentamente os moradores
daquele local, expulsando-os à força e destruindo por completo suas casas e
seus pertences. De acordo com notícia publicada no site EBC da TV Brasil no dia
29/09/2012, há uma CPI instaurada na Câmara Municipal de São Paulo para
investigar se os incêndios ocorridos nos últimos meses se confirmam ou não como
criminosos. A Câmara, inclusive, já foi palco de protestos de moradores que
ficaram na rua, perderam seus pertences, ou ainda mais grave, perderam filhos,
amigos ou parentes em algum incêndio recente.
No
caso das remoções em massa, estas são geralmente seguidas de tensões,
confrontos, prisões e até mortes entre a polícia e moradores. A mídia
televisiva tem tratado os incêndios como resultados do intenso calor que se
abateu na cidade e/ou por causa das péssimas instalações elétricas que existem
nas favelas, fazendo assim seu papel de colocar a situação como "fatos
isolados" em uma tentativa de reforçar a ideia de que, mais cedo ou mais
tarde, os incêndios acabariam acontecendo devido à falta de infraestrutura dos
locais onde aquelas pessoas moram. Tudo isso "apazigua e camufla" uma
triste realidade vivida por milhares de brasileiros mergulhados num verdadeiro
"inferno urbano".
De
acordo com pesquisadores do Laboratório de Habitação e Assentamentos
Humanos (LabHab) e do Laboratório do Espaço Público e Direito à Cidade
(LabCidade), da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São
Paulo (USP), oito grandes intervenções em curso estão previstas para a cidade
de São Paulo. O problema é que as remoções, as quais são parte da chamada
reurbanização, não são realizadas dentro de um planejamento real de
infraestrutura, saneamento básico, indenizações pela saída do local onde o
morador habitava, ou ainda, uma real discussão do por que aquelas famílias
devem ser removidas para outro local. Não há a construção de um diálogo claro
ou participação efetiva dos moradores no processo. A vida humana fica relegada
a um segundo ou terceiro plano porque "o mercado ou o poder do capital não
podem esperar". Ainda nesse contexto, a Defensoria Pública da União e o
Ministério Publico limitam-se aos cálculos dos impactos causados pelas remoções
e/ou pelos incêndios, apontando claramente que seu posicionamento segue o
discurso da reurbanização inevitável e urgente. Como resultado dessa política,
o número de desabrigados ou sem-teto na capital paulista só tem aumentado a
cada dia.
Em uma época em que alguns teóricos
chegam a anunciar o "fim da história", a luta de classes se demonstra
mais evidente do que nunca, exposta de forma perversa através de despejos,
perseguições e assassinatos, que obedecem a uma lógica famigerada entendida e
anunciada em forma de "ordem e progresso", quando, na verdade,
estamos testemunhando um apartheid de classes diante dos nossos olhos. Em seu
livro, "A Condição da Pós-modernidade", David Harvey enxerga o
capital como um processo não uma coisa; e é exatamente esse processo que
vivenciamos nas mais diversas áreas urbanas no Brasil e em diferentes parte do
mundo. Nas palavras de Harvey,
Esse processo mascara e fetichiza, cresce através de
uma destruição criativa, cria novos desejos e necessidades, explora as
capacidades de trabalho humano e de desejo, transforma espaços, e acelera o
ritmo de vida. Ele produz problemas de acumulação material para a qual há
apenas um número limitado de possíveis soluções. (HARVEY, 1990, p.343) (Tradução
minha)[1].
Vemos que esse processo vai se
"naturalizando" como inevitável e é justamente pelo fato de que
existe um débito histórico do Estado com a própria população é que se criam
mecanismos como o discurso da reurbanização; discurso este que legitima a
remoção de famílias das favelas, que são vistas como um entrave para o
desenvolvimento e para o crescimento econômico local e global. No entanto, somente
aqueles poucos que tiverem condições financeiras de se endividar pela vida
inteira poderão adentrar ao mundo do apartheid urbano e se mudar para as
cidadelas monitoradas por câmeras 24 horas. O mundo dos condomínios fechados (e
muito bem fechados) com a garantia das empresas de segurança privada, que cada vez
mais ganham espaço nas áreas residenciais e comerciais.
A
fragmentação e a compartimentação do espaço geográfico são características do
momento histórico em que vivemos. De acordo com Santos (2011, p. 81), "com
a globalização, todo e qualquer pedaço da superfície da Terra se torna
funcional às necessidades, usos e apetites de Estados e empresas nesta fase da
história", ou seja, nada está livre e nem deve estar de se adaptar a esse
sistema que tudo empacota e transforma em produto para ser ofertado ao "deus"
que nos acostumamos a chamar de mercado. O movimento que segue é o de
apropriação e desapropriação, ocupação e desocupação se reproduzindo o avanço
mercantilizado de uso dos espaços em um ritmo que não cessa e tende a acelerar-se
cada vez mais enquanto houver espaços a serem explorados.
O capital avança em direção dos
"espaços vazios" sem se preocupar com o dia de amanhã numa onda de emergência
criada por ele mesmo onde a acumulação material se concentra cada vez mais nas
mãos de poucos e a maior parte dos grupos humanos se vê cada vez mais alijada
de participar efetivamente desse processo.
A problemática da moradia em São Paulo é
também um retrato de um país que há muito está em débito consigo mesmo, fruto
de um Estado falido, incapaz de trabalhar de forma mais justa a coletividade.
Lugar onde se prega o sustentável mas se aplica justamente práticas contrárias
ao mesmo princípio. Como resultado, temos mais violência, o aprofundamento da
competitividade na luta por espaços, o empobrecimento das massas, mais
injustiça em todos os níveis imagináveis e o constante desrespeito aos direitos
humanos entre outros direitos fundamentais. Ao mesmo tempo, o tão propagado
desenvolvimento é usufruído apenas por uma pequena parcela de atores globais representados
pelos grandes bancos e corporações transnacionais, verdadeiros manipuladores do
poder do dinheiro e da informação. Atores que mantém boa parte da população
"prisioneira e cativa" na era das telas de TV, Internet e celulares,
os quais correspondem positivamente a cada nova ordem imposta pelo capital.
[1] Tradução minha para o original em inglês. "The
process masks and fetichizes, achieves growth though creative destruction,
creates new wants and needs, exploits the capacity for human labor and desire,
transform spaces and speed up the pace of life. It produces problems of
overaccumulation for which there are but a limited number of possible
solutions." (HARVEY, 1990, p. 343)
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