domingo, 30 de outubro de 2011

Facebook e o mito de Narciso - Um Museu de Você Mesmo.

Texto do site OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA:

O anúncio de um novo recurso na popular rede Facebook, batizado de Timeline (Linha do Tempo), tem sido notícia ao redor do mundo nos últimos dias. Usuários da rede – que conta com 750 milhões de adeptos – manifestam quase euforia em blogs e comunidades virtuais, disputando quem será o primeiro a estrear o recurso e resenhando seus prós e contras à medida que o novo sistema é paulatinamente implantado para todos. Enquanto isso, analistas na imprensa discutem os perigos de expor (ainda mais) detalhes muito particulares de nossas vidas aos olhos alheios.

Ilustrativa dessa euforia é a resenha “Timeline é a Melhor Coisa que o Facebook já Fez”, assinada por Sam Biddle e publicada no popular blog Gizmodo Brasil. Diz o autor:

“Ela será uma história visual da sua existência, começando pelo seu nascimento. Sim, o fato de você ter saído da sua mãe (e como! E onde!) está agora presente nos servidores do Facebook. Amores, perdas, amigos, inimigos, aniversários, términos de namoro, viagens, gatos, cachorros, bebedeiras – tudo isso, desde quando você existe até hoje, documentado e compartilhado online com todos que você conhece. Esta é simplesmente a tentativa mais ambiciosa de catalogar a bagunçada massa humana na história da internet.”

Para promover o recurso e seus novos processadores, a Intel criou, em parceria com a empresa de Mark Zuckerberg, o Museu de Você Mesmo– uma exposição visual sobre a história de sua vida baseada nas informações disponíveis na rede social.

Vazia de significado

Em meio à euforia generalizada daquele que é anunciado como o maior lançamento da história do Facebook, ressabiado, não penso nos benefícios ou malefícios à minha vida social ou profissional, à minha privacidade, aos meus direitos de imagem. Nada disso. Lembro-me do mito de Narciso.

O estudo dos mitos, sejam os clássicos (gregos), sejam os de outras culturas – afinal, como ensinou o mitólogo Joseph Campbell, “mito é a religião dos outros” –, ajuda a situar o homem no universo e a nos proporcionar uma experiência de sentido para a vida. Mircea Eliade, em O Sagrado e o Profano, afirma ainda que “a função mais importante do mito é, pois, fixar os modelos exemplares de todos os ritos e de todas as atividades humanas significativas: alimentação, sexualidade, trabalho, educação etc”.

E o que Narciso nos ensina sobre o Museu de Você Mesmo?

Na clássica história grega, o jovem caçador Narciso, considerado o mais deslumbrante homem de toda a Grécia, atrai os amores de todos, mas a todos repele. Estava profetizado pelo sábio Tirésias, o velho adivinho que viveu em corpo de homem e de mulher e que, cego, previa o futuro, que Narciso teria vida longa, conquanto não observasse o próprio reflexo. Os anos passam, Narciso cresce e não demonstra interesse amoroso por ninguém, embora todos, homens e mulheres, o cortejem. Não manifesta atração nem pela bela ninfa Eco, que cai de paixão pelo jovem e o persegue floresta adentro, até que, desesperada pelos insistentes foras que recebe do rapaz, termina seus dias definhando no fundo de uma caverna, de onde repete as últimas palavras de todos que passam por ela. Até que de eco só resta a voz pálida, condenada a repetir os outros, a voz vazia de significado, a voz despersonalizada.

Fascínio da autocontemplação

Um dia, Narciso, que é o contrário de Eco, é o homem voltado apenas para si, acaba tragicamente tomando contato com o próprio reflexo. Durante uma caçada, cansado, afasta-se dos amigos no meio da floresta e resolve parar para beber um pouco de água em uma fonte natural. Quando se abaixa à margem para umedecer os lábios, surge a encantadora surpresa. Seu reflexo emerge, nítido, sobre o espelho d’água. A princípio, não percebe que está vendo a si mesmo, e imediata e arrebatadoramente apaixona-se pelo que vê. A beleza diante de seus olhos é tanta, tão plena e iluminada, que Narciso não consegue tirar os olhos do lago. Passa dia e noite admirando-se, ao sol e à lua, maravilhado com os divinos encantos de seu próprio rosto.

Lentamente, definha. Sua pele se torna murcha, seus lábios, roxos, seus olhos afundam na face enquanto a morte se aproxima. Nem por um instante, contudo, desgruda os olhos do espelho d´água. Sem poder consumar o seu lancinante amor por si próprio, pela sua imagem, Narciso morre diante da fonte que foi seu encontro e perdição, enquanto seu corpo se transforma numa flor roxa de folhas brancas que vive sempre debruçada no leito das águas – o narciso. Quando faz a travessia para o mundo dos mortos, a bordo do barco que singra o infernal rio Estige, seu espírito se debruça mais uma vez sobre as águas, contemplando sua beleza imortal.

E assim termina o mito. Mais de dois mil anos depois das primeiras narrativas conhecidas da história de Narciso, contudo, nossa era reedita, na forma de museus de nós mesmos e cintilantes telas de computador, o espelho d´água onde nos admiramos. Onde admiramos nossos milhões de amigos, nossas “curtidas”, tweetadas e retweetadas, nossos nomes no Google. O espelho d´água, transfigurado em tela, continua sendo simultaneamente uma potencial fonte de vida ou de destruição, de alimento ou de definhamento, para todos os homens.

A todos, e principalmente aos tentados a mergulhar no fascínio da autocontemplação, contudo, o mito traz preciosas lições.

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[Renato Essenfelder é editor e professor de Jornalismo das universidades Mackenzie e ESPM, em São Paulo, e doutorando em Ciências da Comunicação pela ECA-USP]

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